Pedro Alexandre de Oliveira
2a Edição
2004
Prefácio
Um bom vinho costuma ser repentinamente despertado da escuridão onde jaz
adormecido para eternizar momentos. Assim, desperta este “saboroso aperitivo
alegrador do figo humano”, em sua segunda edição, para eternizar um momento de
vida, no passado, mas que ainda é presente na lembrança dos costumes e das
pessoas que viveram em torno do Vão d'Areia, um dos especialíssmos lugarejos da
cidade maranhense de Pastos Bons.
A obra, O Vão d'Areia, é bem mais que uma coleção de causos, nascida de
narrativas fiéis, fielmente transcritas para o papel. Sua definição se
entrelaça com o princípio da uma trajetória de vida, onde se iniciou a formação
de valores éticos, de princípios de amizade, fidelidade e respeito.
"Veja, caro leitor, como é saboroso conhecer o
Vão, até antes de vê-lo de perto.” Cada passagem nos transmite um pouco do
sabor das coisas simples e valorosas que muitas vezes são levadas ao
esquecimento, durante nossas vidas compromissadas, afastando-nos da essência de
nossas almas.
“Vejo-o ao vivo” enaltece o dom da lembrança que
valoriza uma existência. Não se tira vida de onde não se tem. Esta pérola traz uma
narrativa sinceramente presente que parece transpassar, como uma lâmina, as cortinas espessas
do tempo, adocicando o presente instante de quem a tem ante os olhos.
O
querido autor “sabe tudo de geografia”, mas não se compromete com a geografia
do lugar, nem tampouco com pormenores temporais. O tempo que ladeia a narrativa
não tem compromisso com a seqüência dos fatos. Aliás, o tempo sempre nos
convida à reflexão, especialmente quando se ganha um afeto muito grande pelas pessoas
do Vão. Um leitor desavisado provavelmente imaginaria que aqueles simpáticos
moradores não mais existam, nem suas prosas, seus costumes, suas danças, suas
rezas e ladainhas. Não é verdade. Estão todos lá. O Vão transcende os rótulos
costumeiros de tempo: é eternamente presente.
As
pessoas ainda estão lá, em suas atividades, em seus cotidianos. A sanfona ainda
mistura o suor à poeira dos terreiros. As estradas ainda percorrem trilhas. O
galo ainda desperta o sol no quintal. A banco da praça ainda se enamora da
cancela. A prosa de final de tarde ainda põe o sol no horizonte.
O
Vão continua na lembrança de todos os que viveram aquela época ou que ainda o
vêem "ao vivo". Sempre haverá um caminho de roça, um mangueiral, um
peba, um cavalo para ser "quebrado".
Fomos alcançados por O Vão
d'Areia graças ao exemplo de vida de quem o testemunhou. Nós, filhos
orgulhosos do caro escritor, pedimos a Deus que tenhamos também tantos causos
para contar aos nossos filhos e, estes, aos filhos de nossos filhos. Lá, algum
dia, em algum lugar, a lembrança reviverá o Vão.
Agora, reiteramos o convite: "Vamos, caro leitor, vamos rever o
Vão...".
Irmãos Césares
I |
Subúrbio,
pérola de Pastos Bons, há 540 km de São Luís. |
O
Vão d'Areia é uma pérola, pertencente ao município de Pastos Bons, sertão
maranhense, há 540 km de São Luís, a capital dos sobradões, dos azulejos. Esta
é a capital da Ilha dos Namorados, dos mais apaixonados. Isto é São Luís, na
expressão do amor e da verdade. A verdade nua e crua como falam os
expressadores da razão. Mas São Luís não é só isto. É ainda mais parte
integrante do sentimental rouxinol da família maranhense - o poeta das
palmeiras - que tem como berço natal, a sertaneja cidade de Caxias, neste
Estado.
Voltemos
a Pastos Bons. Descansemos um pouco. Vamos rever o Vão d'Areia. Vamos penetrar
no mundo sentimental e social daquela pérola irradiadora de tantas alegrias.
Isto na expressão da verdade. Penetremos. Vamos lá dentro. Vamos conhecê-lo
melhor ou recordá-lo mais. O Vão d'Areia é a pérola de Pastos Bons. Eu digo
pérola e não perola, do verbo perolar. Chamo-me atenção para a grafia dos dois
vocábulos: pérola e perola. Vão d'Areia é um recanto dos lugarejos: Boa Vista,
Triunfo, Vargem-de-Cima e Cantim. Boa Vista e Triunfo ficam à margem direita do
riacho que nasce nos canaviais dos Evaristo, na Vargem-de-Cima, onde temos ali
o patriarca Evaristo, pai do Cândido, do Felex, do Raimundinho, do Luís e da
Rosa. Este riacho desemboca na Lagoa-do-Cantim, Lagoa das Traíras grandes,
gordas, gostosas e cobiçadas pelos mais exigentes valorizadores dos bons
paladares e dos estômagos cheios. Mesmo sem muito apetite, os peixes que descem
pela margem esquerda, banhadora do Vão d'Areia, são mais saborosos, com certeza.
Veja, caro leitor, como é saboroso conhecer o Vão, até antes de vê-lo de perto.
Experimente conhecê-lo. Vejo-o ao vivo.
Quem nos conta estes fatos, aqui narrados, são senhores
moradores e admiradores daquela pérola e de suas adjacências. As adjacências
são conhecidas por nomes singulares. Além do Vão d'Areia, há o Vão do Barreiro
e o Vão da Inhuma, no território de Pastos Bons.
Pastos Bons, por outro lado, tem qualquer coisa que
contradiz a verdade. Por exemplo, os mais entendidos conhecedores das raízes
dali, dizem: “Em Patos Bons há uma santa que é uma prostitua e o bispo é
protestante”.
Nas chapadas de Pastos Bons encontramos grandes
faveiras.
Belas faveiras, onde o gado repousa sob o balanço de seus galhos. É bonito e
muito significativo ver o balanço de seus galhos sobre o gado descansando,
remoendo caroço de macaúba e os próprios frutos das faveiras. É lindo recordar,
com saudade, o folclorismo de Pastos Bons.
II |
Os
Macacos |
Saindo do Triunfo para o badalado Vão d'Areia, lá encontramos
os macacos, de galho em galho, de folha em folha, à procura de alimentos:
coco-babaçu, milho-das-roças, pitombas, etc. Os macacos quando invadem uma
roça-de-milho, o proprietário desta perde o lucro que teria daquela roça. Eles
andam de bandos. Astuciosos, que são, deixam dois outros macacos vigiando
possíveis invasores. Quando o proprietário chega de mansinho, sem ser visto, o
bando foge e, ao entardecer, chamam os vigias para uma conversa séria.
Reúnem-se todos e dão uma surra nos vigias que choram - choram mesmo. São
substituídos e pode tornar a acontecer, caso haja novo descuido por parte
deles. Recomendações mais severas. Não podem cochilar. A ordem é dura, mas é
ordem.
Os
macacos quebram o coco colocando-o sobre uma pedra e arriando uma outra pedra
sobre ele. As pitombas são engolidas. Entretanto, antes de engoli-las,
experimentam a possibilidade dela sair no fundo do espinhaço. Sentindo
dificuldade, não a engolem.
Veja, caro amigo, como aquele animal foi gente, como dizem
os bem entendidos na arte de ser gente, com "J".
III |
O
Necão |
Os habitantes do Vão d'Areia são senhores pacatos e
verdadeiros amigos. São pobres ricos, mas de espírito. Estes são agregados dos Teixeira
e dos Costa. Entre eles podemos destacar os Bolé, os Roque, chamados, na
intimidade, de Buraco, Buraquim (Antônio Buraquim), e o Manoel Ferreira de
Oliveira, o popular Necão que costumava dizer: “Home que não caga um quilo de
bosta, de uma vez, não é home”. E garantia: “Quem quiser ver...”. Necão é um
cearense de um e noventa de altura aproximadamente. Cem quilos de peso. Se bem
que, segundo ele, nunca se ouviu falar de alguém que reclamasse de seu peso. A
esposa dele, por exemplo...
Num período eleitoral, como é comum acontecer, as mesas dos
grandes estavam fartas e o Necão fora convidado a comparecer em Pastos Bons,
para votar. Quem come muito, bebe muito. Caindo de sede, depois de encher o
“bucho” a ponto de não poder se envergar mais, o Necão disse: “A vontade que eu
tenho é de entrar no rio até onde a água der na boca, só pra não ter que me
veigar pra beber.”
Certa vez um jacaré açoitou uma filha de Necão com a cauda.
Sua filha, uma jovenzinha de uns oito anos, Francisca. Ele perseguiu o réptil durante
vários dias até que se encontraram. O jacaré com o rabo e Necão com seu facão
”rabo-de-galo”, aquele instrumento de roçar mato para plantar algodão elbaço.
Necão foi vencedor e satisfeita ficou toda a grande família do Vão. O couro
ficou em exposição durante vários dias, no local do desfecho.
Necão, certa vez, estava fazendo cerca com seu filho
caçula, Ciçô. Conversando, dizia: “Parece que vai chover”. Mais cerca e mais
conversa: “parece que vai chover” E o Ciçô nada dizia. Então, Necão falou
sério: “Eu tou te dizendo, baixa-da-égua, parece que vai chover e tu não
responde?”.O Ciçô: “Pai não tá me perguntando nada! Pai tá dizendo ““Parece que
vai chover...””.
Necão vai à feira aos domingos. Não para comprar; só
para se divertir. Lá, ele experimenta de tudo: rapadura, farinha, banana,
mel-de-abelha, etc. Procura os preços e experimenta o produto. Usa de sua
franqueza com os vendedores. “- O preço desta farinha?”. “-Tanto”. “-Não
presta”. “- E da rapadura?”. “- Outro tanto”. “-Esta não vale nada”. Isto se
repete todos os dias de feira. Nada presta; mas ele terminar por regressar com
a pança cheia. Assim ele se tornou bem conhecido dos feirantes.
Mais ou menos em 1940, Necão, já um tanto rico,
planejou matar as saudades do seu Ceará. Como o dinheiro para as despesas era
pouco, ele acertou com a família: "Eu compro um jumento bom, levo umas
arrobas de fumo e vou vendendo para facilitar nas despesas. Zefa trepa no
jumento, anda umas léguas, depois desce e eu trepo. Onde a gente se arranchar,
eu ofereço o fumo. Aí, eu vou metendo o fumo todo dia até chegar ao Juazeiro.
Lá temos uns parentes. Assim tá resolvido, quando a Zefa descer, eu trepo.
Quando eu descer, ela trepa. Assim vamos trepando e empurrando o fumo até lá.
Vai ser uma viagem paidégua”.
IV |
A
Cobra e as Mangas |
Numa manhã não muito feliz, a esposa do Necão, dona
Josefa, foi mordida por uma cobra. Estava chovendo. Ele foi chamar o curador.
Pois, quando uma pessoa é ofendida por cobra, chama-se um curador. Este, algumas
vezes, faz a cura sem precisar ir até ao doente. O certo é que, quando o Necão
foi chamar o curador, passou sob um mangal. Havia muitas mangas caídas. Ele não
perdeu tempo. Sacou do seu rabo-de-galo e comeu algumas. Estava apressado. De
volta, mandou o curador seguir e foi conferir quantas mangas havia comido. Ele
contou somente setenta e dois caroços.
V |
Local de suas comemorações
festivas e as rezas. |
Os habitantes do Vão são pessoas divertidas. Aproveitam bem
as oportunidades que lhe proporciona a vida familiar, dentro daquelas casinhas
cobertas de telha de babaçu e portas de mesma espécie, tornando-se um teto bem
seguro, digno de seus habitantes; oportunidades oferecidas pelos proprietários
das terras. O terreiro formado pelo encontro das casas é bem cuidado, bem
barrido. Não é varrido, é barrido mesmo. Tudo é bem limpo com bassoura de malva
ou bassourinha de rezar contra frieira e outras coceirinhas típicas dali. A
reza contra a frieira é assim:
- Vim de Roma, de romaria, rezando frieira e frieiraria; ramo verde e
água fria, com poderes de Deus e da Virgem Maria.
Rezando três vezes a frieira desaparece na hora e pronto.
Existe também a reza da dor de cabeça. A velha Antônia Borges reza sozinha, andando
pelos caminhos, com um bastão.
Certa vez uma senhora estava com dor de cabeça e mandou
chamá-la. Ela era quase surda, rezava alto. Os meninos da vizinhança dela
ouviam suas palavras:
- Andando pelo caminho encontrou Jesus Cristo e Este lhe perguntou
“Aonde vai, Barba?”(Santa Bárbara). Ela respondeu “Vou tirar uma dor de cabeça
da cabeça de Josefa”. Ele respondeu “Vai Barba, tira a dor de cabeça da cabeça
da Josefa e manda para as águas do mar, onde não se vê galo cantar nem trovão
trovejar. Vai Barba”!
Os que ouvem isto, saem rezando e
curando os sofredores de dor-de-cabeça. É uma farra, depois, entre curiosos
ouvintes de momento. E continuava rezando, a velha Antônia Borge, como é
conhecida:
- Ai
meu Deus, eu vou pro céu, os anjim vão me levando, de tudeu vou me esquecendo,
só de Deus vou me lembrando.
- Ai
meu filho, estou cansada, muito cansada!
Nos meses em que há novena, depois de beijar o santo,
então, para o encerramento daquela noite, as rezadeiras assim rezam:
- Já
demô graças a Deus. Já bejemo o aitá. Meu Sinhô me dê licença, o seu oratóreu
fechá.
Fecham a porta do oratório e somente no dia seguinte será
reaberto para as comemorações.
VI |
As festanças, os
instrumentos, os tocadores e locais de execução. |
As festas são movidas a cachaça e executadas ao som
de instrumento de taboca: o pife. Os instrumentistas são o Regino, o José, o
Feliciano, e o famoso Rufino, o maestro e o maior pifeiro daquela localidade.
Ele tem os lábios grossos. Alguns dizem que seus lábios formam uma rodilha que
é colocada sobre o pife.
Um cidadão, o Ramiro, amigo do lugar, numa noite
festiva, com a barriga cheia de feijão com abóbora, ficou pertinho do Rufino
enquanto tocava e, ali, foi despejando os gases. Ele notava que o Rufino botava
a cabeça de um lado para o outro, evitando a catinga chegar aos olhos; pois “se
batesse nos olhos como batia na venta, seria capaz de cegar”, dizia ele. O
Regino, filho de tio Patrício (ou Tipatrício), além de bom pife, é um bom
prato. José, seu irmão, não fica atrás. Durante as disputas ao redor da mesa,
ouve-se: “Mamãe, o Regino come mais que a gente, mamãe. Não deixa, mamãe, não
deixa”.
O Rufino, certa vez, desejando ir dançar numa
festinha e não tendo "destão" para pagar a cota, foi à casa do Ramiro,
aquele que peidava na venta dele, na festa, e lhe disse:
- Ramilo, estou encraviado. Vou parar na cadeia, agora, hoje.
- Que foi? Tu matou alguém?
- Estou encraviado. Achei cem miréis, cem miréis. Uma nota grande.
Quando eu apresentar esse dinheirão numa casa, vão dizer que eu furtei e vou
preso.
E repetia aquilo impacientemente. O Ramiro, querendo
um pedaço, arranjou os destão para ele ir pra festa, beber e dançar. Com este
truque, arranjou dinheiro, dançou e bebeu a noite inteira com as noivas dele.
VII |
Este povo pacato, mesmo
assim. |
O Vão é território pacato. Numa noitinha de festa,
quando predominava a música “Quero bem a moça”, um cidadão sacou seu
rabo-de-galo, no meio da sala e espalhou o povão, dizendo para do dono da casa:
“a casa é tua, mas o terreiro é nosso”. Apagaram o farole e a poeira
levantou-se no terreirão. Não passou de arruaça, porquanto o povo é do grogue e
não da briga. O respeito predomina mutuamente ali. Mas dizem: “Quer vim, vem;
cachaça não, mas quer vim, vem”. Mas não tem briga.
VIII |
Tio
Varisto |
O tio Varisto, ou simplesmente Tivaristo, o
comandante da Vargem-de-Cima, dono de engenho, muito católico, muito rezador.
Todas as crianças, netos e sobrinhos lhe rendem homenagem. Quando o encontram tomam-lhe
a bênção: “Bença Tivaristo”. Ele, arregalando os olhos vermelhos, pergunta: “De
quem é?”, se referindo ao pai da criança, “de João? Nossa Senhora das Dores te
abençoe já que eu não tenho o poder de te abençoar”. E continua andando com a
cabaça d’água na cabeça.
Tio Varisto é um cidadão disciplinador.
Especialmente dos filhos, Cândido, Raimundinho, Felex, Luis, Rosa, dos netos,
entre eles, o Joãozinho, tocador de “armonca”. O Ramiro é sobrinho dele e o
Pedro do Ramiro é afilhado do Felex.
O Raimundinho do Varisto é o professor da família.
Ele passa a lição para seus alunos e vai acompanhar os trabalhos lá no engenho.
A casa-colégio é num alto, frente para o engenho e ele conhece a voz de seus
alunos, apesar da distância. Mesmo de lá, ele quer ouvir o estudante dizer:
“b-a-bá, b-e-bé, b-i-bi, b-o-bó, b-u-bu” ou “um mais um, dois; dois mais oito,
dez; noves fora um; a regra de dez vai um, dois e três”. Quem não faz assim “é
na Santa Luzia”, como é chamada a temida palmatória.
O tio Varisto festeja o dia da Sagrada Santa Cruz.
Nesse dia, reune-se muita gente devota e se ouvem perfeitamente eles dizerem:
- No dia da Sagrada Santa
Cruz, cem vezes me ajoelhei, cem vezes o padre nosso rezei, cem vezes a Santa
Cruz beijei.
E assim eles festejam durante noites consecutivas.
Esta é a filosofia do tio Varisto, aquele escuro gordo, de olhos vermelhos,
vestido numa calça torôca e sempre rezando. O som saindo pelo nariz: “Rum, rum,
rum, rum, rum...”.
IX |
O
Carrapato Miúdo e o Peba |
Durante o verão, naquelas chapadas, o carrapato
miúdo predomina. Caem de bolo nas pessoas que passam por baixo daquelas grandes
faveiras, onde o gado valente, geralmente, fica às suas sombras, abrigado. É um
insetinho danado. Morde mesmo e se espalha pelo corpo todo dos animais
racionais e irracionais.
O Peba é um animal que se come e que vive geralmente
próximo de cemitérios, em buracos cavados por ele. Morrendo uma pessoa,
enterram-na e ele, rodando o cemitério, vai comê-la dentro do chão. Engorda-se
bastante e o povo faminto não deixa a presa escapar.
X |
Murrins
e Buritis |
Vizinho ao Vão, há o povoado dos Murrins. Lá, há,
anualmente, uma festa que atrai muita gente para rezar. Então um cidadão, baixo,
falando a respeito daqueles festejos, diz: “Não gosto de reza nos Murrins. O
lugar é longe como o diabo. O caminho é escuro como o diabo. A reza é comprida
como o diabo. O santo fica alto como o diabo. Eu, baixo como o diabo. Não vou
mais por lá. Aquilo é um diacho...”
No povoado Buritis há sempre uma novena. O puxador e
encerrador das rezas é o cidadão - Almiro, irmão de tio Patrício. O último dia
sempre é encerrado com um leilão e um arrasta-pé. Então, para a festa começar,
o Almiro encerra a novena com um terço. Primeiro, ele reza a primeira parte do
terço. "Ave Maria...". Depois ele diz: "É como eu já disse, como
estou dizendo, atrás duma vai outra, atrás duma vai outra...", puxando as
contas do rosário. E continua: "É como eu já disse, como estou dizendo,
atrás duma vai outra, atrás duma vai outra...". Então o terço termina cedo
e a dança logo começa.
Os brincantes, dançadores em vez de da vivas ao
padroeiro, gritam: "Viva o Almiro, viva o Almiro, viva o Buriti do Almiro!
Vivô, vivô, vivô, vô, vô, vô...".
XI |
Os
Macaquinhos |
Há uns macaquinhos nas matas de Pastos Bons que
andam sempre em bandos e conversam entre eles. Certa noite um cidadão, caçador,
estava em atividade no meio da mata. Rede armada no alto de uma árvore, na expectativa
de alcançar uma paca, na mira de sua espingarda. De repente chegou um bando dos
macaquinhos e balançaram sua rede, dizendo “Quem tá qui? Quem tá qui?”. O
apavorado caçador respondeu “Sou eu, seu bicho”. Eles queriam algo: “Me dá
fumo, me dá fumo”. Ele tremia: “Não gasto, seu bicho”. E os macaquinhos saíram
pulando nos galhos: “Tá danado, tá danado, tá danado!..."
Clareando o dia, o caçador desceu da árvore tão
atrapalhado que a arma caiu de sua mão e disparou. No seu povoado, ouviu-se o
tiro e sua mulher planejou logo uma boa panela. Mas ele esquecera até a
espingarda no meio do mato. Só algum tempo depois ele ficou sabendo que se
tratava de uns macaquinhos juruparis, o que lhe trouxe grande alegria para sua
vida sócio-familiar.
XIII |
A Brincadeira
do Biro, Biro, Biruá |
Em 1932, mais ou menos, muitas famílias, procedentes
do Ceará, Pernambuco, se alojaram em território de Pastos Bons, no povoado de
Boa Vista. Ali, eles se familiarizaram e introduziram diversos costumes. Entre
outros, uma dança chamada Biro. Divertida, que usa versos bem rimados e bem
aplaudidos também.
Formam-se filas paralelas e os condutores da
brincadeira saem trocando de companheiro, semelhante à dança de São Gonçalo, de
uma extremidade a outra, cantando seus versos rimados. Um deles: “Ê biro, biro,
biruá, dei um peido na cozinha derrubei o cupiá”.
A poeira procura passar das alturas dos dançarinos
menos altos. É uma beleza. Vale a pena recordar os pifeiros, os músicos, a
poeira.
O Biro, numa noite de luar, no terreiro do velho
Tipatrício. Ele que, quando mete umas e outras, fica brabo, diz com facilidade
e segurança: “Cabôco, se tu te mete a besta, eu te meto este cabo de machado
que tu vai cair lá na casa do Antônio do Vão da Reia”. Ninguém ousa continuar
desafiando-o.
XIV |
Valeroso
|
Valeroso é um cachorrão bonito, de cor preta, de
algum morador do Vão. Os meninos, quando vão para a roça, sempre levam o
Valeroso e este vai que vai feliz. Quando, ao meio-dia, a bóia chega, todos estão
com fome, inclusive o Valeroso. Braz, um dos meninos, junto com os outros,
comem o arroz com abóbora e o Valeroso, perto, fica prestando atenção. O rango
não está tão fácil; todavia, ao Valeroso não interessa pouca comida.
Na hora do almoço do Valeroso, os meninos botam um
pedaço de abóbora num caldeirão e o enchem até a metade com água. O Valeroso
olha o pedaço de abóbora submerso no caldeirão, olha para os meninos e começa a
beber aquela água, tentando alcançar a abóbora. Quando está próximo de alcançar
a abóbora, os meninos completam novamente o caldeirão com água. O Valeroso pára
um momento, olha para eles e persiste bebendo água. Ao final, o cadelo fica com
a barriga cheia d’água e a abobrinha termina por ficar para a sobremesa. As
gaitadas são repetidas, mas o pobre “Valerôôôôso” não acha graça alguma.
No outro dia de roça, vão novamente os meninos e o
feliz Valeroso pelo caminho.
XV |
As
Senhoras |
As senhoras do Vão são bem caprichosas. Fazem rede, labirinto,
tinturam suas próprias roupas. Tudo isto com a intenção de ajudar seus maridos
.
Quando vão quebrar coco-babaçu, fora de casa,
arrumam seus materiais de trabalho e partem cedinho. Geralmente, seus maridos
juntam um montão de cocos. Elas vão quebrá-los, saindo bem cedo de casa. Existe
um ritual para tal atividade. Quando o pilão começa sua atividade, ouve-se a
ladainha das quebradeiras de coco matinais, acompanhadas de um ou mais pifes e
às vezes um bombo:
-
Quando dá de madrugada,
Que vejo o pilão zoar,
É a mulher do babaçu,
Que não sai sem almoçar,
Que não sai sem almoçar.
* * *
- Menina pega o machado,
E pega o macete também.
Chama o lião e a piaba (cachorros)
Pra gente pegar tatu.
XVI |
As
Moças |
As moças do Vão d’Areia, velhas ou novas, também são
cantadas em versos:
As moças do Vão d’Areia
Namoram por um capricho,
É na sala, é na cosinha,
É na igreja, é no lixo,
É no claro, é no escuro,
Este namorá é seguro
Que só costura de rabicho.
As moças velhas quando vão
para o caritó
Levam uma porca na garupa
E um barrão atiracó.
Bota pó, Vitalina tira pó
O amor de moça velha é
somente no caritó.
XVII |
O
Carão do Vão |
Naqueles terreirões
do Vão e vizinhança, cantam, além do biro-biruá, o carão, cuja letra é assim:
- O carão foi pra lagoa,
Foi comer seus aruá,
Menina segura o tiro,
Não deixa o carão voar.
- Chorava mãe,
Chorava pai,
Choravam filhos,
Com pena do papagaio.
* * *
- Essas meninas de hoje,
Só carregam pabulage,
Por cima fazenda fina,
Por baixo a mulambage.
- Chorava mãe,
Chorava pai,
Choravam filhos,
Com pena do papagaio.
XVIII |
Inhuma |
Inhuma é ave que anda sempre
de casal e cantam juntas, ao mesmo tempo. Dizem que, inteligente que são, certa
vez distribuíram as letras do alfabeto entre si, em quantidades iguais.
Reconferindo as mesmas, faltou a letra “u” para uma delas. Então ela reclamou,
pedindo à outra: “Tiofa, midá o u. Midá o u”. E conseguiu o “u” da Tiofa. É
assim o canto da inhuma.
XIX |
Antônio
Francisco, o Capador |
Procedentes do Ceará, certa época, chegaram alguns
cearenses, tendo como chefe o cidadão Antônio Francisco, com a esposa e filhos.
Trabalhadores, dançadores e bons amigos. O velho chefe era destemido. Fazia
roça grande, tinha boa colheita e era, realmente, bem divertido. Gostava de
passar bem. Sua mesa era farta e ele era um bom prato.
Trouxeram consigo vários costumes, como o de comer
galo. Galo era barato, custava cerca de dez tostões e poucos eram os
pretendentes. Seguindo o exemplo do Antônio Francisco, o povo do Vão passou a
comer galo e começou a faltar galo no mercado. Indignado, ele dizia: “Quando eu
cheguei aqui, ninguém comia galo. Só eu comia galo. Era dez tostão o galo.
Ninguém comia galo. Hoje, todo mundo come galo. Eu vou passar a comer barrão!
Barrão de qualquer idade. Pode trazer barrão que eu compro. Vou comer barrão,
nem que eu fique fedendo a barrão pro resto da vida”. De fato, barrão é um
porco não capado bastante fedorento.
Antônio Francisco tem um apelido proveniente de um
dos seus ofícios: capador. Porquanto ele capa cavalo, garrote e até égua.
Também é um bom “quebrador” de cavalo, como é chamado o negociante nas
redondezas. Certa vez, discutindo negócios de cavalo com outro quebrador, disse
a este “Meu nome é Antônio Francisco Alves, capador, seu merda. Dou cada
quebrada aqui na porta que o cara vai morrer lá em cima da serra”, fazendo
alusão a um outro cidadão que após ter quebrado um cavalo com ele foi embora e
morreu em cima da serra da Boa Esperança. Essa fama de bom quebrador metia medo
na concorrência.
XX |
Uma
"maimota" dançando |
Numa daquelas festinhas, certa vez, num vesperal, Necão
ia passando e viu o Sivirino, seu filho, que é tão alto quanto ele, dançando.
Parou pra ver e comentou depois: “Eu vi uma coisa feia. Onte, na festa, o
Sivirino pegou a moça mais piquena e saiu, e saiu – mostrava como era o
Sivirino dançando – e saiu dançando no meio da sala, enveigado, parecia uma
maimota. Uma maimota véia e feia. Era a coisa mais feia do mundo. O
Sivirino...“.
A farra dos meninos, em cima desse acontecido,
despertava mais ansiedade do Sivirino e sua namorada. Não deu em casamento, mais
deu bons pratos nas brincadeiras de terreiros. Seus colegas, apenas diziam “O
Sivirino, o Sivirino, o Sivirino”, imitando a "maimota", dançando.
XXI |
O
Corujão e o Papagaio |
Voltemos ao Triunfo, à Boa Vista e à Vargem-de-Cima.
Ali existe corujão: uma ave noturna, um pouco maior que uma coruja comum. Essa
ave de rapina tem preferência alimentar por pequenos mamíferos e outras aves.
Ele persegue os papagaios que, à noite, dormem em cima das casas de seus donos.
O papagaio é falador. Fala mesmo, quando ensinado pelos seus donos.
Certa noite, o corujão, voando sobre uma casa, viu
um papagaio e o agarrou. Alçou vôo com o papagaio preso em suas garras. O pobre
papagaio gritava, chamando pelos seus donos: "Chega José, o corujão vai me
levando. Vai me matar, vai me comer. Não deixa. Não deixa". Seus donos
saíram para o terreiro da casa, chorando, ouvindo os últimos gritos do
papagaio. Todavia, foram inúteis os pedidos e as lágrimas de seus donos
permanecem em seus olhos e em seus corações.
A pobre ave foi presa fácil para o faminto corujão.
Seus donos ainda hoje guardam os gritos da ave em seus corações. Como é triste
ouvir os gritos de um animal querido, sendo devorado no espaço aéreo, por outro
sem coração.
XXII |
A professora,
o valente e a parteira |
Amigos, encerrar esta narrativa, sem fazer qualquer
referência a criatura mais importante dali de Pastos Bons, é esquecer-se da
própria existência. Esta pessoa é dona Quinô: a professora que nasceu
professora, professora de muitas gerações, professora dos professores, na
expressão da verdade nua e crua, como dizem os entendidos na arte de educar e
falar certo.
Outro que não pode passar incólume, é o valente Pedro
do Ramiro. O Pedro diz que não se esquece do que viu e aprendeu, no Triunfo, na
terra de seu tio Mundico e tia Donana. Na Boa Vista, lá no alto, na casa da
madrinha, Mariquinha, funciona a escola regida por Dona Quinô, desde os idos de
34, a primeira da região. Na descida da ladeira, rumo ao Triunfo, à esquerda,
num pau, há uma morada de uma abelha valente. O Pedro descobriu e certo dia,
quando ia para casa, à frente dos outros alunos, assanhou as bichinhas. As
meninas que vinham atrás padeceram e não tardaram a denunciar à Dona Quinô.
Esta disse ao Pedro: “Se tu fizeres isto de novo, eu vou lá, meto tua cabeça no
cortiço”. O Pedro, muito atento, ouviu esta palavra - cortiço - pela primeira
vez e nunca mais se esqueceu.
Por último, mas não menos importante, guardemos na
memória a Joana Kuritiba, da Vargem-de-Cima. Aquela parteira, leiga, das unhas
grandes e sujas. Com as unhas, ela cortava o fumo para mascar nos momentos de
grandes aflições profissionais. Entretanto, o respeito e o carinho na arte de pegar
menino, era a verdade verdadeira! As parturientes, quando a viam de perto, no
momento da execução de sua arte, profissão, o medo era tanto que a criança não
aceitava a conversa; pulava lá fora. E ponha pulo nisso! Dizem que saía
correndo em direção ao Vão d'Areia, no território dos Teixeira e Costa.
XXIII |
Epílogo |
Veja o Vão d’Areia e imagine-o há alguns anos
passados; beleza e alegria sem par. Recorde os jacarés, as inhumas e seus belos
cantos. Tipatrício e seu cabo de machado. Tivaristo e suas rezas; seus olhos
vermelhos bem abertos, procurando saber quem era o menino, filho de quem, para
ele poder abençoar, através de Nossa Senhora das Dores, já que ele não tinha o
poder de abençoar. Findo aquele momento inesquecível da benção do Tivaristo,
ele partia para o centro do canavial, com a cabaça no ombro. Ao final do dia,
ia prestar contas ao pé do Cruzeiro de suas devoções. Recorde o Necão e seu
rabo-de-galo, roçando o mato para plantar algodão elbaço.
Antes do encerramento, com a professora Quinô, a
parteira Kuritiba, e o valente Pedro do Ramiro, eu estava entretido, escrevendo
esta etapa, quando um curioso me perguntou: "Porque dizem que é errado
dizer o povo disseram, Pastos Bons são feios, a família sabiam, etc?".
Inspirei-me nas repostas de dona Quinô para dizer ao cidadão: "Só diz que
está errado quem não lê um pouquinho da Bíblia. Nós pecamos por pensamento,
palavras e omissão. Certo? Termos a concordância verbal, nominal e ideológica. Nesse
caso, a colocação está correta, pois se trata de uma concordância
ideológica". O povo não é só uma pessoa. Portanto, o povo disseram.
Mas independente da controvérsia que o assunto possa vir a causar, o importante é que nunca é tarde para se aprender; conhecer e fazer amigos; para se recordar uma passagem da vida, de um lugar, uma namorada ou uma canção.
“Posso envelhecer; meu coração permanece jovem;
renasço a cada manhã; canto glória ao homem que em novo se ergue; e morra o
herói que deixei de ser”.
Pedro Alexandre de Oliveira
(Pão)